O cidadão comum, quando ouve ou soletra a palavra burocracia, revolve imagens de formulários, formulários e formulários, mais complexos que simples, esfarelados na descrição dos direitos, minuciosos nas exigências, presos a minudências a obrigarem a grandes perdas de tempo, originando prejuízos na evolução de negócios, zangas em matéria de afectos e exaltações quando a papelada é devolvida porque a assinatura do requerente não estava exactamente igual à registada no bilhete de identidade.
O burocrata é o epígono da burocracia, o Dicionário Contemporâneo de Língua Portugueza, editado pela Imprensa Nacional em 1881, dele diz o seguinte: "empregado de alguma repartição pública, e especialmente de alguma secretaria d'Estado. Emprega-se quasi sempre para designar um indivíduo muito compenetrado e vaidoso do seu cargo". Outros dicionários mais antigos e mais recentes não fogem desta definição, com maior ou menor alacridade. No entanto, a burocracia é nebulosa de múltiplos contornos a originar opiniões e estudos de diferentes matizes ideológicos, suscitando o interesse de filósofos, cientistas sociais, historiadores e politólogos que a sujeitaram (e sujeitam) a exames severos, concluindo que a mesma é tentacular, opressiva e responsável por grande número de desgraças que desabaram sobre o Mundo e continuarão a desabar.
Para Hegel "a administração é o espírito do Estado", o sempre desleixado Marx contrapõe: «a burocracia não é o espírito do Estado, mas a sua falta de espírito». Ao que Hegel designava por administração, Marx chamava burocracia, o autor de A Sociedade Civil Burguesa concebe o Estado em três níveis, o primeiro é o poder, o terceiro é a sociedade civil, no meio, o segundo, o que estabelece a ligação entre o poder e a base é a administração. Já para Marx a burocracia é o conjunto de meios que o Estado (ele próprio um meio) dispõe e coloca ao serviço da classe dominante. Como sabemos outros pensadores marxistas caso de Lenine, Trotsky, Gramsci e Rosa Luxemburgo, levando em conta o papel dos partidos de massas na transformação da sociedade entendem a burocracia não como meio de transmissão, sim como sistema de decisão. Nos países ditos socialistas a burocracia decidia (nos que dele se reclamam continua a decidir), os tremendos resultados dessa política são conhecidos, muitos milhões de pessoas ainda sofrem os seus negativos efeitos.
Em todas as esferas organizativas a burocracia exerce activa e quantas vezes paralisante acção, os governantes, todos os governantes, de todas as latitudes, condenam-na e prometem envidar esforços no sentido de lhe reduzir o poder, colocando-a ao serviço das sociedades. Debalde. A Senhora Simone Weill em artigo publicado no longínquo ano de 1933, sobre a burocracia e a divisão do trabalho afirma: "Este desenvolvimento da burocracia na indústria não é senão o aspecto mais característico de um fenómeno de realidade geral." Antes, Max Weber definiu as características da burocracia sublinhando o princípio das competências da autoridade, orientado e subordinado por regulamentos administrativos, as suas actividades imprescindíveis à concretização das finalidades estarem categorizadas debaixo do amplo chapéu de funções oficiais, por último a autoridade exigida para que as ordens dadas sejam cumpridas, é escalonada com rigor e estabelece as regras respeitantes aos meios de coacção que podem ser colocados à disposição dos funcionários. O eclético e sage Edgar Morin em "o que não é a burocracia", artigo saído em Arguments/1 - Le Bareaucrati, escreveu: "Há palavras que se tornam demasiado pesadas, que acabam por ser esmagadas pelos seus conteúdos e que, à força de tudo terem explicado, exigem uma explicação. Assim acontece, hoje, com a palavra burocracia aplicada a tudo, ao mundo industrial, ao mundo do Estado, ao mundo dito socialista como ao mundo dito capitalista. Tudo no mundo moderno nos mostra o desenvolvimento das administrações e organizações burocráticas. Estas proliferações burocráticas são as estruturações sociológicas de um verdadeiro complexo de civilização, também caracterizado pelo desenvolvimento da técnica, da divisão e especialização do trabalho, pelo maior papel do estado moderno, pela criação em maior número de unidades económicas e sociológicas gigantes. Não é possível isolar a burocracia e a burocratização de um fenómeno social e humano total ao qual ainda não demos nome, ou melhor, ao qual damos nomes limitados ou insuficientes tais como «civilização técnica» (sugerida por Friedmarin, e a melhor, em minha opinião), «civilização industrial», «neocapitalismo», «capitalismo de estado», «socialismo de estado», etc".
O multifacetado filósofo neste artigo escrito há mais de quarenta anos (continua actual) faz-nos perceber a gigantesca dimensão da burocracia, até porque: "a burocracia é função de um certo número de variáveis e as suas características políticas modificam-se de acordo com as mudanças sofridas por essas variáveis; de acordo, igualmente, com a constelação das diversas variáveis. Assim se explica a ambivalência burocrática (seja a total submissão das burocracias aos aparelhos do poder, seja a possível usurpação do poder pelas burocracias)”.
Pelo exposto, o cidadão arreliado porque é obrigado a suportar demorada e arreliadora burocracia simplesmente por ter mudado de residência, está longe de intuir a complexidade da burocratização das sociedades. Ganha se tentar percebê-la, para tanto não precisa de estudar densos tratados, basta ler O Processo de Kafka, ou o hilariante e sulfúrico O Valente Soldado Sveijk, de Jaroslav Hasek.